Não queria me acostumar com tudo isso
Por Nonato Furtado
Confesso que já tentei, mas não queria me acostumar com a nossa sociedade. As mazelas sociais estão cada vez mais corrosivas, além de destruírem os corpos mazelados de alguns, estão aniquilando a alma de outros tantos. Não me refiro somente aos pedintes que vemos diariamente nos sinais, dentro dos coletivos, nos terminais, expondo suas chagas, seus medos, suas frustrações. Não. Falo da insensibilidade crescente no nosso meio.
Parece que fazemos parte de um grande reality show, onde cada papel é desempenhado como se cada participante caminhasse e agisse ao som de uma música hipnótica. Como será que o possível público que nos assiste avalia esse nosso desempenho? Diante de um pedido, tentamos justificar para nós mesmos que aquela situação é normal, que não adianta ajudar, que é mais um desocupado que poderia muito bem estar trabalhando. Sabemos que essa auto-justificativa sai meio torta e ficam faltando bons argumentos e junto com eles, fica aquela sensação de que isso não está correto.
Não gostaria de tornar esse texto apelativo, da mesma forma que fazem muitos para ganhar dinheiro com essas mazelas sociais. Isso é muito comum em determinadas igrejas, programas televisivos, propagandas de determinadas ONGs, fazer com que você se sinta “o culpado”. Não, minhas divagações não têm essa pretensão, até porque declaro que não tenho essa desenvoltura publicitária. Mas é importante não digerirmos o que vemos como normal, aceitável, fato.
Quem sabe se uma grande transformação social não comece por um trabalho com a sensibilidade humana. Ela poderia começar com boas porções de poesia, prosa, música, dança, pintura, escultura e teatro. O contato consciente ou inconsciente com as artes deveria fazer parte do nosso ritual diário, assim como o despertar, o asseio pessoal, a comida, o dormir e novamente, o levantar. Deveria fazer parte dessa nossa rotina, a arte em suas diversas manifestações. Que os governos possam criar e aplicar projetos que ofereçam espaços e equipamentos culturais para todas as pessoas em lugares os mais inusitados possíveis. Isso poderia fazer parte de um grande experimento/empreendimento social que, ao decorrer de determinado período, pudessem ser mensuradas as principais transformações na alma humana e os seus reflexos no social.
Essas minhas divagações só existem como uma tentativa, quem sabe inútil, de não me acostumar com tudo isso. Tento, mas as forças contrárias são muito fortes. O individualismo e a competitividade são cada vez mais imperativos. No entanto ,insisto nessa teimosa não subserviência, na esperança e na luta por um vir a ser. Porque, na verdade, não quero me acostumar com tudo isso.
Nonato Furtado
Mestrando em Lingüística - PPGL/UFC
Professor tutor da UAB/UFC
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